
A ópera Carmen (1875), do compositor francês Georges Bizet, já serviu de inspiração para inúmeras adaptações, desde a paródia de Charles Chaplin, Burlesque on Carmen (1916), à tradução em flamenco do espanhol Carlos Saura (1983). Apesar do cinema usualmente se derreter pela obra de Bizet, cuja heroína possui força e nobreza por seguir seus desejos, Carmen de Godard dissipa essa relação já na primeira seqüência. O filme, adaptado por Anne-Marie Miéville, envereda muito mais para a novela de Prosper Mérimée, de 1845, onde a cigana protagonista incita crimes e cuja característica principal é seduzir e arruinar a vida dos homens que cruzam seu caminho: "Se você me quer, eu não te quero. Mas se eu te quero, cuidado!". A Carmen de Godard também usa um lema parecido:"Se eu vier a te amar você está ferrado", frase proferida pela protagonista que, como grande parte das mulheres criadas pelo diretor franco-suíço, é manipuladora e imprevisível. No filme, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1983, é ela quem provoca constantemente o amante, causando o não-entendimento entre o casal, resumido nas perguntas de ambos: "Por que as mulheres existem?" e "Por que os homens existem?". Carmen (Maruschka Detmers), jovem membro de um grupo terrorista, assalta um banco com os comparsas e seduz o guarda do local, Joseph (Jacques Bonnaffé). Apaixonado, o rapaz a acompanha até o local que lhe serve de esconderijo, um apartamento emprestado pelo tio da moça, o cineasta falido Jeannot (interpretado pelo próprio Godard). Ela também o convence a participar do suposto documentário que estaria produzindo. Durante toda a fita, a ação é intercalada com cenas do ensaio de um quarteto interpretando Beethoven. No entanto, como os filme de Godard nunca se revelam simples ao primeiro olhar, a função dos músicos só será revelada ao final e, enquanto isso, eles apenas servirão de contraponto ao barulhento tráfico de veículos de Paris. Uma movimentada avenida também é a imagem escolhida para cobrir diálogos que acontecem dentro do carro. O diretor ainda explicita o descontentamento com a mudança de categoria do cinema, antes arte e agora produto. Para tanto, coloca inúmeras vezes na boca do chefe de produção do documentário a frase: "Não se preocupe, somos profissionais". Outras crenças do diretor são ditas pelo velho cineasta que vive a praguejar: "A polícia é para a sociedade o que o sonho é para o indivíduo". São dele também as observações de cunho comunista: "Mao [Tsé-Tung] era um grande cozinheiro, deu de comer a toda a China", ou então algo como "a sociedade capitalista cria bens que não satisfazem necessidade nenhuma, da bomba atômica aos copos plásticos". No entanto, o momento mais peculiar é a imagem de uma mão colocada em frente ao conhecido chuvisco da televisão quando não há programação. A seqüência, musicada com composições de Tom Waits e Beethoven ao fundo, reflete a fuga de Joseph diante da solidão e da rejeição impostas por Carmen. Mas Carmen de Godard vale mesmo pelo cinismo do diretor em cenas como a da faxineira que limpa o sangue do chão sem se incomodar com os corpos espalhados pelo local, ou do velho que lê o jornal ao mesmo tempo em que serve de escudo em tiroteio. A apatia, o individualismo e o egocentrismo dos personagens ainda traduzem muito bem a forma como parte dos indivíduos encaram a sociedade.
Luara Oliveira (Cineweb)
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